Tom Stoppard no Roda Viva: Bifequibe não é Paxman

Ontem, o Roda Viva recebeu sir Tom Stoppard, OM, CBE.

IMHO, o programa das segundas à noite da TV Cultura, além de muitas vezes apresentar boas entrevistas, tb serve como termômetro do jornalismo brasileiro.

Entre os entrevistadores há sempre representantes das redações mais importantes do país, teoricamente, o suprasumo da grande imprensa brasileira.

Fiquei meio envergonhado com a falta de preparo da maioria dos coleguinhas que participaram do programa e da arrogância ignorante da moderadora, Bifequibe.

Tom Stoppard é um cara desconhecido no Brasil. Mesmo entre a "elite intelectual". Conheço algumas coisas pq meu amigo HC gosta muito dos textos dele.

No começo deste ano, fui junto com HC comprar um presente na Livraria da Vila dos Jardins.

Aproveitamos para ver se existiam textos de peças do Stoppard. Não encontramos nada nas prateleiras.

Depois de perguntar para vendedores "comuns", fomos atendidos por um sujeito que era responsável pela parte de teatro da Livraria Cultura e havia trocado recentemente de emprego.

Ou seja, um dos caras que tem conhecimento direto sobre o consumo teatral das "elites"...

Como o sujeito tb gosta do Stoppard, acabamos batendo um papo que, entre outras coisas, confirmou a absoluta falta de demanda e intimidade do público brasileiro com o autor.

Portanto, IMHO, a obrigação principal do Roda Viva deveria ser apresentar o autor, perguntar como começar a conhecer a obra, qual peça poderia ser encenada no Brasil, se há traduções para alguma outra língua que ele tenha gostado, etc.

A entrevista começou muito mal. A primeira pergunta da moderadora Bifequibe foi agressiva e sem sentido... Algo sobre a morte do eletricista Jean Charles de Oliveira... Aparentemente, fruto de um nacionalismo ignorante comum no Brasil.

Qualquer foca sabe que não adianta perguntar para um jogador de futebol sobre a tradição destópica britânica.

Pq uma jornalista experiente quer saber a opinião de um autor de teatro que mistura coisas como Hamlet e leis da propabilidade (Rosencrantz and Guildenstern Are Dead) ou Pink Floyd com a Tchecoslováquia sob a ditadura comunista ( Rock'n'Roll) sobre um erro da polícia londrina?

Ainda por cima, aparentemente, a tradução simultânea não sabia diferença entre dizer q o brasileiro foi "morto" (killed) ou assasinado (murdered) pela polícia...

Nada contra um jornalista ser agressivo com o entrevistado. Muito pelo contrário. Uma das coisas que a imprensa brasileira não tem e faz falta é um Jeremy Paxman.

Para quem não conhece, Paxman é um jornalista da BBC famoso por ser arrogante, agressivo e direto...

Como não tolera enrolação por parte dos entrevistados, há momentos divertidíssimos, como a célebre entrevista com o então ministro do interior, Michael Howard, feita em 1997.

Paxman repetiu 12 vezes a pergunta "Did you threaten to overrule him?" pq Howard insistiu nas respostas típicas de político que não quer se comprometer (O curioso é que Howard não tinha feito nada errado, mas como não tinha certeza, preferiu tentar enrolar ao invés de admitir desconhecimento).

A diferença entre a arrogância da Bifequibe (e outros coleguinhas) e a do Paxman (e outros jornalistas britânicos que seguem o estilo): preparo.

Paxman sempre tem na ponta da língua um monte de informações para retrucar impedir qualquer tentativa de enrolação. O cara tem direito de ser arrogante pq é competente.

Já o painel do Roda Viva, aparentemente, leu meia dúzia de entrevistas e se considerou preparado para entrevistar o mais celebrado autor de teatro da parte do mundo que fala inglês ainda vivo.

Por algum motivo, o Roda Viva deixou o teatro para segundo plano e perdeu um tempo enorme tentando tirar algo sobre as adaptações para o cinema.

Bifequibe chegou a perguntar sobre uma frase específica de uma cena d'O Império do Sol. Stoppard, meio embarassado, explicou que a frase não era dele e sim do autor do livro que ele adaptou... se eu tivesse feito a pergunta teria sentido uma vontade irresistível de me esconder debaixo da bancada ou sair para ir ao banheiro.

Em outros momentos, a conversa caiu em um pseudo papo cabeça de estudante do primeiro ano de faculdade de comunicação descobrindo as maravilhas da mídia comparada.

A elite do jornalismo brasileiro, aparentemente, não tem a modéstia ou a capacidade para perguntar algo sem saber a resposta.

Não vejo motivo para essa insegurança. Ninguém que vive fora eixo Londres/Nova York tem obrigação de conhecer profundamente o teatro do Stoppard.

Um jornalista não tem obrigação de saber de tudo... quem deve saber de alguma coisa é o entrevistado...

Ontem, o público certamente seria melhor servido por entrevistadores livres da preocupação com a própria imagem e armados apenas com uma curiosidade genuína de conhecer o entrevistado. IMHO, a Ana Maria Braga teria feito um trabalho melhor.

Mas nem tudo foi catastrófico. O painel pelo menos teve o mérito de deixar o Stoppard falar a vontade e divagar...

Eu nunca assisti uma peça do Stoppard nem sou fã de teatro. Entretanto, já ouvi as adaptações para Rádio 4 de Rosencrantz and Guildenstern Are Dead, Rock'n'Roll e Arcadia.

Vi tb a versão cinematográfica do Rosencrantz and Guildenstern que conta com a participação de gente como Gary Oldman, Tim Roth e Richard Dreyfuss (gosto mais da peça de rádio).

Uma das coisas que chama a atenção logo de cara são os diálogos primorosos, como este do comecinho de Rosencrantz and Guildenstern Are Dead:

O diálogo começa pq Rosencrantz começa a brincar de cara ou corôa e a moeda sempre cai em cara..

Rosencrantz: Eighty-nine.
Guildenstern: It must be indicative of something, besides the redistribution of
wealth. (He muses.) List of possible explanations. One: I'm willing it.
Inside where nothing shows, I'm the essence of a man spinning double-headed
coins, and betting against himself in private atonement for an unremembered
past. (He spins a coin at ROS.)
Rosencrantz: Heads.
Guildenstern: Two: time has stopped dead, and a single experience of one coin
being spun once has been repeated ninety times... (He flips a coin, looks at
it, tosses it to ROS.) On the whole, doubtful. Three: divine intervention,
that is to say, a good turn from above concerning him, cf. children of
Israel, or retribution from above concerning me, cf. Lot's wife. Four: a
spectacular vindication of the principle that each individual coin spun
individually (he spins one) is as likely to come down heads as tails and
therefore should cause no surprise that each individual time it does. (It
does. He tosses it to ROS.)
Rosencrantz: I've never known anything like it!
Guildenstern: And syllogism: One, he has never known anything like it. Two: he
has never known anything to write home about. Three, it's nothing to write
home about... Home... What's the first thing you remember?
Rosencrantz: Oh, let's see...The first thing that comes into my head, you mean?
Guildenstern: No - the first thing you remember.
Rosencrantz: Ah. (Pause.) No, it's no good, it's gone. It was a long time ago.
Guildenstern: (patient but edged): You don't get my meaning. What is the first
thing after all the things you've forgotten?
Rosencrantz: Oh. I see. (Pause.) I've forgotten the question.
Guildenstern: How long have you suffered from a bad memory?
Rosencrantz: I can't remember.

Mesmo que vc não acompanhe o enredo, acaba seduzido pelo prazer de ouvir conversas sobre assuntos variados cheias de referências elegantes temperadas com surrealismo.

Por isso, achei interessante saber que enredos para ele são difíceis de fazer, mas os diálogos saem fácil... não são fruto de um processo racional que o autor é capaz de explicar.

Ou seja, diálogos impresssionantes nascem de uma habilidade natural... um talento no estado mais puro.

Tb gostei de saber que ele acompanha as duas primeiras produções de cada peça e faz modificações nos textos levando em conta a reação do público...

Rolaram coisas interessantes, apesar do papelão da imprensa brasileira. Se vc não assistiu a entrevista, dá para comprar o programa no site do Roda Viva.

Comente

Filtered HTML

  • Quebras de linhas e parágrafos são feitos automaticamente.
  • Tags HTML permitidas: <a> <b> <dd> <dl> <dt> <i> <li> <ol> <u> <ul> <br> <p>

Plain text

  • No HTML tags allowed.
  • Endereços de páginas de internet e emails viram links automaticamente.
  • Quebras de linhas e parágrafos são feitos automaticamente.

Atenção:

Não há censura de opinião nos comentários, mas o vc é o responsável pelo que escrever. Ou seja, aqui vale o Yoyow (You Own Your Own Words).

Lembre-se: Opinião é diferente de informação.

Informações sem fonte ou que não puderem ser checadas facilmente podem ser deletadas.

Serão apagadas sem dó mensagens publicitárias fora de contexto, spam usado para melhorar a posição de sites e outras iniciativas de marqueteiros pouco éticos.

Respeite as regras básicas Netiqueta.

Grosserias desacompanhadas de conteúdo, coisas off-topic e exagero nas gírias ou leet que dificultem o entendimento de não-iniciados tb não serão toleradas aqui.

Vou apagar sumariamente todos os comentários escritos inteiramente CAIXA ALTA, mensagens repetidas e textos que atrapalhem a diagramação do site.

Além de prejudicar, a leitura é falta de educação.

Não publique tb números de telefone, pois não tenho como checá-los. As mensagens com números de telefone serão apagadas inteiras.

Obviamente, qq conteúdo ilegal tb será deletado sem discussão.

Evite também mensagens do tipo "me too" (textos apenas concordando com o post anterior sem acrescentar algo à discussão).

Clique aqui para ver algumas dicas sobre como escrever um texto claro, objetivo e persuasivo.

Todas os comentários são considerados lançados sobre a licença da Creative Commons.

Se você não quer que seu texto esteja sob estes termos, então não os envie.



br101.org by br101.org is licensed under a Creative Commons Attribution-Share Alike 2.5 Brazil License.

Nenhum produto M$ foi usado na construção destas páginas.
Este site usa Drupal (Apache, PhP e MySql).

Se vc quiser tentar aprender a fazer um site igual a este usando softwares livres, vá até o weblivre.br101.org e leia:

Como fazer um website de verdade?