João Candido, Almirante Negro ou Mestre Sala dos Sete Mares? Já esquecemos da censura durante a ditadura militar no Brasil?
Ontem, fui ouvir um amigo meu baterista em um bar aqui perto. Bossa nova. Piano, baixo acúsitico... uma cantora jovem, com ascendência afro-brasileira. Dindi... Eu sei que vou te amar...
Algumas músicas saem do mundo do barquinho à beira-mar dos anos 50 e lembram a repressão nos anos 1970.
Do tempo que se sonhava com a volta do recentemente falecido irmão do Henfil e de tanta gente que partiu.
Sensação boa de viver em um país razoavelmente democrático onde ninguém mais tem medo de cantar as lágrimas de Marias e Clarisses causadas pela repressão da ditadura militar.
Mestre Sala dos Sete Mares. Opção pela letra censurada pelos milicos. Um banho de água fria.
Depois do show, fui conversar com a moça. "Mas eu tô cantando como o João Bosco e Aldir Blanc escreveram", ela disse.
Fiquei triste de ouvir alguém cujos ascendentes foram caçados, empilhados em um navio e vendidos nos mercados públicos da nossa terra mãe gentil desconhecer a história do João Candido, o Almirante Negro.
Pedi para ela procurar na internet sobre a história da Revolta da Chibata e a letra original.
Espero que ela encontre este artigo da dhnet.org.br no qual o João Bosco conta o que aconteceu.
Tivemos diversos problemas com a censura. Ouvimos ameaças veladas de que o CENIMAR não toleraria loas e um marinheiro que quebrou a hierarquia e matou oficiais, etc. Fomos várias vezes censurados, apesar das mudanças que fazíamos, tentando não mutilar o que considerávamos as idéias principais da letra. Minha última ida ao Departamento de Censura, então funcionando no Palácio do Catete, me marcou profundamente. Um sujeito, bancando o durão, ficou meio que dando esporro, mãos na cintura, eu sentado numa cadeira e ele de pé, com a coronha da arma no coldre há uns três centímetros do meu nariz. Aí, um outro, bancando o “bonzinho”, disse mais ou menos o seguinte:
- Vocês não então entendendo... Estão trocando as palavras como revolta, sangue, etc. e não é aí que a coisa tá pegando...
Eu, claro, perguntei educadamente se ele poderia me esclarecer melhor. E, como se tivesse levado um telefone nos tímpanos, ouvi, estarrecido a resposta, em voz mais baixa, gutural, cheia de mistério, como quem dá uma dica perigosa:
- O problema é essa história de negro, negro, negro...Eu havia sido atropelado, não pelas piadinhas tipo tiziu, pudim de asfalto etc, mas pelo panzer do racismo nazi-ideológico oficial.
Decidimos dar uma espécie de saculejo surrealista na letra para confundir, metemos baleias, polacas, regatas e trocamos o título para o poético e resplandecente “O Mestre-Sala dos Mares”, saindo da insistência dos títulos com Almirante Negro, Navegante Negro, etc. O artifício funcionou bem e a música fez um grande sucesso nas vozes de Elis Regina e João Bosco. Tem até hoje dezenas de regravações e foi tema do enredo “Um herói, uma canção, um enredo – Noite do Navegante Negro”, da Escola de Samba União da Ilha, em 1985.
Veja as diferenças nesse quadro publicado em http://www.cefetsp.br/edu/eso/patricia/revoltachibata.html.
O Mestre Sala dos Mares
(João Bosco / Aldir Blanc)
(letra original sem censura)
Há muito tempo nas águas da Guanabara O dragão do mar reapareceu Na figura de um bravo marinheiro A quem a história não esqueceu Conhecido como o almirante negro Tinha a dignidade de um mestre sala E ao navegar pelo mar com seu bloco de fragatas Foi saudado no porto pelas mocinhas francesas Jovens polacas e por batalhões de mulatas Rubras cascatas jorravam das costas dos negros pelas pontas das chibatas Inundando o coração de toda tripulação Que a exemplo do marinheiro gritava então Glória aos piratas, às mulatas, às sereias Glória à farofa, à cachaça, às baleias Glória a todas as lutas inglórias Que através da nossa história Não esquecemos jamais Salve o almirante negro Que tem por monumento As pedras pisadas do cais Mas faz muito tempo |
O Mestre Sala dos Mares
(João Bosco / Aldir Blanc)
(letra censurada)
Há muito tempo nas águas da Guanabara O dragão do mar reapareceu Na figura de um bravo feiticeiro A quem a história não esqueceu Conhecido como o navegante negro Tinha a dignidade de um mestre sala E ao acenar pelo mar na alegria das regatas Foi saudado no porto pelas mocinhas francesas Jovens polacas e por batalhões de mulatas Rubras cascatas jorravam das costas dos santos entre cantos e chibatas Inundando o coração do pessoal do porão Que a exemplo do feiticeiro gritava então Glória aos piratas, às mulatas, às sereias Glória à farofa, à cachaça, às baleias Glória a todas as lutas inglórias Que através da nossa história Não esquecemos jamais Salve o navegante negro Que tem por monumento As pedras pisadas do cais Mas faz muito tempo |
Tô achando que tá na hora de mostrar para as gerações mais novas o que aconteceu na música brasileira entre 1964 e 1984.
Não sei se já existe... mas talvez seja útil relançar todas as músicas censuradas com as letras originais... Coisas que nunca ouvimos, mas fazem parte de uma história que não pode ser esquecida.
Não deve ser difícil. A maioria dos autores ainda tá viva e continuam tocando por aí.
Veja também: Censura: Quero ouvir o Chico Buarque! Quero ouvir o Chico Buarque!
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